Um dos mais perversos efeitos das situações complexas é o efeito tranquilizante de saber que “algo está sendo feito a respeito” — mesmo que a medida adotada não seja adequada. Isso exige que cada cidadão esteja alerta, pois muitas práticas podem ser mais nocivas do que a própria doença, e a desatenção a elas pode causar problemas ainda mais difíceis e complexos.
Diante do contexto da pandemia da COVID-19 e suas consequências ao comércio, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MP-MG) alertou que a elevação do preço de produtos e serviços em percentual superior a 20% é crime. Para tanto, usou como fundamento o art. 4º, b, da Lei de Crimes Contra a Economia Popular (Lei nº 1.521 de 1951) e mobilizou tanto os órgãos de defesa do consumidor, quanto os próprios consumidores, a Polícia Civil e a Polícia Militar daquele estado.
Em Coronavírus e o Museu de Grandes Novidades Econômicas Brasileiras, texto que publiquei ontem, discuti e demonstrei que, se devemos assumir o compromisso com a disponibilidade de produtos e serviços essenciais, a pior medida a ser tomada é o controle do seus preços. Isso porque o controle dos preços engessa o fornecimento a ponto de reduzir a oferta do produto ou serviço até que ela desapareça.
No entanto há mais um ponto que deve ser endereçado: é necessário se compreender por que o dispositivo da Lei de Crimes Contra a Economia Popular indicado pelo MP-MG não tem validade. Para tanto, é preciso esclarecer algumas bases do Direito brasileiro.
O Direito Penal brasileiro — a área que lida com crimes — é regido pelo princípio da intervenção mínima, que significa que o Direito Penal deve ser a última alternativa possível para a solução de um problema. Ou seja, diante de um problema, devemos esgotar todas outras possíveis soluções antes de partirmos para a esfera penal. Isso acontece porque prender uma pessoa — ou restringir sua liberdade de outra forma — é uma medida radical, que deve ser usada somente em casos de extrema necessidade. Esse princípio também é conhecido como princípio da ultima ratio.
Como consequência desse princípio, se uma outra lei traz uma solução definitiva para determinada situação, ela é aplicada em detrimento da lei penal. Resumindo: se apenas aplicamos a lei penal em último caso, e outra lei já solucionou o problema, a lei penal não deve ser usada. Não só isso, neste contexto, a lei perde a validade.
Foi o que aconteceu com o art. 4º, b, da Lei de Crimes Contra a Economia Popular. Em setembro de 2019, foi sancionada a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874 de 2020), cujo art. 3º, III, declara que todas pessoas, naturais ou jurídicas, têm o direito de definir livremente o preço de produtos e serviços. Então, mesmo que a legislação de 1951 criminalize o aumento de preços maiores que 20%, esse dispositivo não é válido, já que a Lei de Liberdade Econômica é clara e sua aplicação deve prevalecer sobre a legislação penal.
Dessa forma, assim como busquei apontar em Coronavírus e o Museu de Grandes Novidades Econômicas Brasileiras, um problema tão complexo e delicado não será solucionado com medidas simplistas. Mesmo que absortos pelo sentimento de urgência, não podemos tomar remédios cujos efeitos colaterais sejam piores do que a própria doença. Se queremos vencer esta dramática pandemia, precisamos deixar os preços livres.
Por Pedro Tavares Fernandes