Vem-se atravessando um cenário, que, há poucos meses, seria completamente impensado. O qual, por resposta direta da pandemia instaurada na vida de todos devido à COVID-19, trouxe todas as suas consequências e mudanças. Onde os reflexos desta situação tão inusitada emergiram, aos poucos se assentaram conforme passavam os dias e a rotina natural foi substituída sem prazo de devolução, deixando marcas que hão de ser carregadas até as próximas gerações.
Com esforço incansável, trabalha-se para elaborar soluções que prevaleçam diante do terrível problema que nos fora entregue sem tempo para respiro ou preparação.
Neste cenário caótico nos deparamos com todo tipo de demanda inimaginável, como a simples análise de um contrato de locação que não se permite sua suspensão devido à falta de previsão no arcabouço legal, entre outros tantos assuntos polemizados neste período em que dúvidas são trazidas a todo momento.
Que respostas poderiam ser trazidas aos que se questionam: “que caminhos tomar para a resolução de impasses onde não existem culpados, apenas vítimas? Como delimitar uma linha clara para auxiliar vítimas que perderam seus entes queridos, tiveram suas vidas totalmente desconstruídas e sua saúde física, financeira e emocional afetadas de forma irreparável? Como preservar o mínimo de integridade e dignidade em meio ao caos?”
E apenas o silêncio é escutado em resposta ao que a história ainda não pode elucidar.
Conforme citado pelas doutrinadoras Paula A Forgioni e Maira Yuriko Rocha Miura, na Revista do Advogado, “A compreensão da disciplina jurídica brasileira referente à modificação dos vínculos contratuais em decorrência de fatos imprevistos e imprevisíveis exige, antes de tudo, o reconhecimento da existência de dois microssistemas diversos, cada qual funcionando com os princípios peculiares: o Direito do Consumidor e o Direito Empresarial.
[…] O arcabouço protetivo do Direito do Consumidor não deve ser estendido aos empresários que pretendem a revisão de suas avenças, pois parte do pressuposto de vulnerabilidade de um dos contratantes diante do outro. Aqui há normas de ordem pública inderrogáveis, protegendo o interesse social e conferindo prerrogativas à parte hipossuficiente, como a proteção contra práticas contratuais abusivas e contra erros à inversão da prova, a interpretação mais favorável na hipótese de cláusula obscura ou com vários sentidos[…].
O Direito Comercial, por seu turno, trabalha com lógica diversa. Presume-se que os contratantes são agentes econômicos ativos e probos, habituados ao giro mercantil. Nessa lente, as partes são livres para, dentro dos quadrantes formatados pela lei, traçarem suas estratégias.
Há autonomia nas escolhas, ao mesmo tempo em que inexiste segurança de que delas advirão vantagens. A lei obriga os empresários a arcar com equívocos em suas jogadas e eventuais prejuízos que deles decorram […].
O problema é que a aplicação do microssistema consumerista deve ser restritiva, destinada apenas às relações jurídicas nas quais exista um consumidor […]. Cada um dos sistemas conta com princípios e normas próprias, que não podem ser trazidos para situações estranhas ao seu funcionamento, sob pena de desvirtuamento de sua lógica e de graves prejuízos para o tráfico mercantil”.
Estas e outros doutrinados analisam os fatos e juntam esforços para tentar diminuir o impacto dessa onda patológica que atravessou o mundo. Trazendo consigo pelo prisma jurídico, a percepção da necessidade de revisão contratual em momentos de crise. Onde vemos despencar a economia mundial e onde nasce o dever do Direto de minimizar tais prejuízos irreparáveis vividos por todos.
Não há de se perder a sensibilidade em analisar caso a caso a questão da manutenção do fluxo saudável das relações comerciais e econômicas contraídas, fundamentais para o desenvolvimento da riqueza mundial, sem que se prejudique uma parte em favorecimento indevido a outra.
A mão firme da justiça, muitas vezes levada por sua cegueira moralmente imputada em suas raízes, pode ser implacável em momentos delicados que exigem uma flexibilidade e empatia, por vezes desconsiderada.
Conforme citado por Anderson Schreiber, no artigo publicado na Revista do Advogado, “existem oito possibilidades produzidas sobre os contratos que devem ser levadas em consideração: (i) impossibilidade definitiva da prestação; (ii) impossibilidade temporária da prestação; (iii) frustração do fim do contrato; (iv) frustração temporária do fim do contrato; (v) desequilíbrio contratual superveniente (excessiva onerosidade); (vi) dupla excessiva onerosidade; (vii) dificuldade econômica do contratante por fatores externos ao contrato; (viii) ausência de impacto contratual ou sobre a economia do contratante”; desvelando a importância trazida por essa análise contextualizada que mostra, dentro de um ambiente inserido, uma decisão embasada e, somente assim, com a certeza da real negociação de consenso saudável.
As partes devem ser apresentadas ao reconhecimento do dever de renegociar, “tendo como fundamento normativo a cláusula geral de boa-fé objetiva descrita no art. 422 do CC”, ainda por Schreiber, levando-se em consideração também outros fundamentos normativos que se posicionam a favor do reconhecimento do dever de renegociar, a menos que se esteja diante de uma impossibilidade definitiva, a qual não será possível proporcionar oportunidade para a renegociação, tendo em vista sua extinção de interesse.
Ao referente dever de renegociar, demonstra-se presente de forma explícita em múltiplos formatos de contrato. Apresentado aqui de modo prático em processos de guarda compartilhada dos filhos entre pais separado.
Diante do cenário pandêmico, a saúde e integridade física e psicológica do menor deve ser levada em consideração, carecendo de criação de um ambiente de ponderação, poupando a criança da exposição desnecessária para o cumprimento do termo referente a guarda e do regime de visitas, que eleva desnecessariamente a riscos de contaminação e convivência entre residências ou, até mesmo, quando se considera a questão da educação on line que está sendo apresentada a esse menor, o qual por convenções de saúde pública e requisições do Estado, levaram as escolas a restrições necessárias por via emergencial para dar sequência ao seu aprendizado.
Em mesma via, tem-se presente a necessidade de entrar em acordo entre as partes figurantes dos contratos de locação, onde os empresários foram demandados a fechar seus estabelecimentos de forma extrema, não tendo fluxo de caixa disponível para tal surpresa, vendo do dia para noite sua expectativa financeira zerada e tendo que se reinventar de forma supersônica para não ver seu negócio ruir.
Em se tratando do contrato de prestação de serviço através das instituições de ensino, as quais tiveram que alterar de forma drástica e completamente despreparada, em sua grande maioria, traz-se o questionamento da eficácia desse ensino, bem como sua remuneração se manter de forma integral quando o contrato inicialmente prevê aulas presenciais.
Sabendo-se da falta de costume, principalmente para os rebentos, em assistir as aulas on-line, levando-se em consideração, inclusive, a indisponibilidade da utilização da infraestrutura do referido estabelecimento – falta de utilização essa que reduz o custo de sua manutenção – entre outras restrições vividas pelos alunos, deve ser considerada a hipótese de concessão de desconto.
Já se esse contrato tivesse sido elaborado com a previsão de aula híbrida e/ou à distância, tal aplicação de desconto não se justificaria, devido sua característica já ter sido prevista inicialmente, não tendo o que rever nesse contexto.
Diante desse cenário desolador, reforçando o assunto dos contratos de locação, tem nos sido apresentados alguns termos julgados, tais como: “(i) autorização de descontos no valor do aluguel por determinado período (por exemplo, pelo tempo que vigorasse o impedimento ao funcionamento das lojas), com o percentual do abatimento variando entre 30-50%; (ii) autorizando que os locatários adimplissem somente 50% do valor contratualmente estabelecido e que os 50% remanescentes fossem pagos em parcelas após a reabertura do comércio, com eventual liberação de multas e outros encargos contratuais; e (iii) inadmitindo a redução do valor do devido, seja pela ausência da comprovação da alteração das condições contratuais, seja por considerar que a situação não seria extraordinária;” termos esses citados por Forgioni e Miura, na Revista do Advogado, assim introduzindo soluções que hão de conduzir medidas paliativas para aqueles que merecem benevolência do Estado nesse momento delicado.
Trazendo a área específica do seguro ao debate, vale analisar alguns dos ramos mais afetados na fase pandêmica, apontando primeiramente a questão do seguro saúde onde a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, de forma praticamente imediata incluiu no rol de procedimentos obrigatórios o teste da COVID-19, tendo a internação como ponto dúbio em função da carência contratual estipulada, onde, tratando-se de contrato novo, prevê prazo de até 180 dias para tal eventualidade.
Já para o contrato de seguro de vida, que à princípio tem como risco excluído a cobertura de morte em situações de pandemia entre outras, houve uma movimentação muito rápida da grande maioria das seguradoras para absorver a demanda imposta, com muita responsabilidade por parte destas que cumpriram papel social fundamental em um dos ramos mais delicados dos contratos de seguro.
Outros ramos que tiveram sua demanda de sinistro aumentada na atualidade tem sido o Seguro Fiança Locatícia, que em síntese, sua cobertura é específica para a incapacidade do pagamento do valor do pagamento do aluguel firmado através do contrato de locação, o qual traz consigo o risco excluído de incapacidade de pagamento do aluguel decorrente de: atos do poder público que atinjam o imóvel, fenômenos da natureza e radiações ionizantes, contaminações nucleares, radiações, quando estes eventos adquirirem características de catástrofe, dessa forma, como fica o locatário, pessoa jurídica, que contratou o seguro e não poderá usufruir da cobertura contratada justamente no período que mais se encontrou vulnerável em sua existência comercial? Momento esse em que a renda de todos caiu drasticamente senão em sua totalidade, os seguros de tal setor não somente auxiliariam aqueles em maior necessidade como criariam a base de segurança necessária evitando mais estragos e infortúnios aos fragilizados, já que demais ramos se ajustaram diante das necessidades impetradas pela pandemia.
Nessa mesma vertente apresenta-se a cobertura para o ramo de lucros cessantes, porém o mesmo não traz consigo, na composição do produto brasileiro, a prescrição indenizatória de eventos decorrentes de suas atividades profissionais em função de isolamento social ou qualquer outra medida de segurança imposta pelo Estado que venha a causar prejuízos à atividade econômica do estabelecimento, mesmo que em alguns ramos de seguro, como os citados anteriormente, contemplaram a necessidade dos indivíduos. Portanto, como se pode verificar, ainda existem espaços descobertos e vulneráveis a casualidades sem a possível contratação de proteção patrimonial.
Perante tantas incertezas impostas pela catástrofe viral global, escancara-se a necessidade de reavaliar diversos temas do Direito, suas especificidades e ramificações que até então não haviam sido expostas a reformas, as quais devem ocorrer de forma austera e veloz. Não podendo, ainda, deixar de cuidar de detalhes que em alguns casos podem ter iniciado antes mesmo da pandemia, portanto não se teria justificativa para trazer ao debate da revisão.
Dessa forma, estima-se que o Judiciário mantenha sua conduta e se empenhe para que os efeitos devastadores da pandemia e de possíveis outras catástrofes que venham a assolar a humanidade sejam minimamente previstas e suavizadas, onde se tenha possibilidade da análise comunitária e que se deva levar em consideração cada situação e suas características peculiares, já que não há forma de ilusão capaz de mascarar a fragilidade do sistema de saúde e instabilidade econômica instaurados pela nova peste perniciosa que só fez aflorar um futuro iminente reformatório que ninguém estava preparado para construir.
Por Margot Valmorbida, nucleada do Núcleo de Corretoras de Seguros