Um problema além do asfalto
Dificuldade de ir e vir em Florianópolis afeta setores como restaurantes, comércio e ameaça investimentos no futuro
O trânsito dos médios e grandes centros urbanos tem sido tópicos de discussão cada vez mais frequente por conta dos constantes congestionamentos e pela necessidade do uso de transportes alternativos.
O preocupante índice de mobilidade de Florianópolis, revelado em uma pesquisa do arquiteto e urbanista Valério Medeiros, demonstra em dados a aflição de motoristas da Capital catarinense.
Desde terça-feira, o DC apresenta matérias sobre os problemas, estudos e soluções para o trânsito na Capital. Na terça-feira, foi mostrada a pesquisa de Medeiros e comprovado seu resultado, com flagrantes do trânsito difícil em pontos da cidade.
A Via Expressa foi o tema da segunda reportagem, na quarta-feira, com o teste do horário de pico: é a 15 km/h que quem chega de manhã na cidade anda nos dias úteis. Na quinta-feira, foi a vez de apresentar a esperança de amenizar os problemas com as ações anunciadas pela prefeitura.
No dia seguinte, a melhor opção em termos de tempo de viagem, menor emissão de poluição e custo: a bicicleta. No sábado, os leitores conheceram melhor o projeto do túnel subaquático, que viabilizaria o Eixo Norte, contribuindo significativamente para diminuir os engarrafamentos na entrada e saída da Ilha.
Os usuários das ruas e avenidas têm opiniões diversas sobre como se poderia amenizar tais problemas. Para representar a sociedade e fechar a série sobre o trânsito, o DC conversou com pessoas que não são especialistas, mas que veem no trânsito um empecilho para o crescimento da cidade.
A presidente da ONG Floripamanhã, Zena Becker; o presidente do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Florianópolis, Tarcísio Schmitt; e o presidente da Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif), Doreni Caramori Júnior opinam sobre os desafios, as soluções, o papel dos motoristas e a nova possibilidade de desafogar o trânsito na entrada e saída da Ilha.
(Geral – Diário Catarinense – 31/05/2009)
“É necessário fazer previsões”
Entrevista: Valério Medeiros, AUTOR DO ESTUDO SOBRE MOBILIDADE URBANA
Formado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o arquiteto e urbanista Valério Medeiros se aprofundou no estudo da estrutura das cidades e da relação com os deslocamentos nos espaços urbanos. Foi para Londres, onde a Teoria da Lógica Social do Espaço (que permite fazer a avaliação do potencial de movimento dentro do espaço urbano, considerando-se a malha de ruas de uma cidade) foi criada nos anos 1970 e comparou sua base de dados de 44 cidades brasileiras – entre elas 21 capitais – com outras 120 cidades do mundo.
A surpresa na comparação foi constatar que as cidades brasileiras têm os piores índices no mundo, ficando atrás até de localidades da Ásia. No estudo, Florianópolis apareceu com a pior integração dentre as 44 cidades brasileiras e só perde para Phuket, na Tailândia, dentre as 164 cidades pesquisadas no mundo.
Diário Catarinense – Por que acontece esse fenômeno nas cidades brasileiras?
Valério Medeiros – O grande momento de ruptura para a expansão urbana se dá a partir dos anos 1960 e 1970, quando o processo passa a ser extremamente acelerado. Isso foi resultante da industrialização acentuada ao longo dos anos 1970 e de uma forte migração campo-cidade, a ponto de, nos anos 1980, mais de 80% da população brasileira viver nas zonas urbanas.
Por princípio, essa migração não é negativa. O problema se dá quando ela não é planejada, estruturada.
DC – Então, como surge efetivamente o problema?
Medeiros – Na hora em que, por exemplo, conjuntos habitacionais foram feitos para atender a essas demandas, as malhas dos bairros não foram desenhadas de modo a ficarem articuladas à cidade precedente.
É como se tivéssemos uma estrutura urbana num ponto e vários núcleos independentes. Como os bairros surgiam afastados do núcleo, o desenho das ruas era feito de forma quase independente. Ao longo do tempo, esses espaços vazios foram sendo preenchidos, cada um a sua maneira, levando a um padrão que, hoje, chamamos de colcha de retalhos.
Essa variação não é ruim por princípio, mas é fundamental que os órgãos gestores do espaço estabeleçam as “costuras”, a partir de vias que conectem as áreas mais distantes, suburbanas e periféricas, às centrais.
DC – Por que é importante levar em consideração essa abordagem?
Medeiros – A gente fala muito sobre os problemas de trânsito, as dificuldades de locomoção nas cidades e sempre se pensa de imediato na quantidade de carros, nos tempos semafóricos, na necessidade de corredores de ônibus, em origens e destinos. Todos estes pontos são muito direcionados com a engenharia de tráfego.
Acho fundamental, também, considerar que a própria malha de ruas interfere nesse processo. E os estudos desenvolvidos em vários locais do mundo comprovam que 70% a 80% do movimento ou do deslocamento dentro de um espaço urbano pode ser justificado a partir das características da malha viária. Ou seja, é uma variável que tem um peso muito significativo, mas muitas vezes não é trabalhada como poderia.
DC – Quais as limitações da pesquisa?
Medeiros – A pesquisa trabalha com a malha viária. Para tratarmos da mobilidade num sentido ampliado é fundamental associar esse aspecto com outras variáveis de trânsito, como origem e destino e quantidade de veículos. Não adianta nada termos uma malha excelente e uma frota muito superior à possibilidade.
DC – Detectado o problema, o que os municípios podem fazer?
Medeiros – Nos aspectos de malha viária, localmente, uma série de pequenas intervenções que permitissem a continuidade de vias, melhor costurando os bairros e estabelecendo grandes eixos de expansão poderiam ser feitas.
Na escala global, seria importante considerar que as cidades continuam no processo de expansão urbana, não tão acelerado, mas ainda significativo.
O resultado disso é a necessidade de uma simulação de cenários futuros por parte dos órgãos e agentes sociais.
DC – O que se deve pensar especificamente em Florianópolis?
Medeiros – O Rio de Janeiro e Florianópolis são cidades muito parecidas num aspecto que se deve pensar: a questão natural é extremamente condicionadora da mobilidade. Ou seja, a estrutura geral de Florianópolis é estabelecida num local que, naturalmente, vai produzir a fragmentação do espaço, resultante dos muitos vazios (dos morros, das lagoas, das baías, das dunas). A mancha da cidade não é compacta, gerando rotas mais longas.
Eu não seria leviano dizendo que para resolver o problema seria necessário aterrar lagos, destruir dunas. Até porque um dos grandes apelos da cidade é a questão natural. O que considero necessário seria fazer previsões nas áreas cabíveis à sustentabilidade e desenvolver um tratamento no sistema de circulação considerando os itens de mobilidade do espaço, ou seja, outros modos de transporte sem ter que alterar a estrutura de ruas de maneira muito grande.
DC – Existe alguma cidade no Brasil ou no mundo que poderia servir de exemplo para a Capital catarinense?
Medeiros – Gosto do modelo de Funchal, em Portugal. Há uma série de meios alternativos de transporte, como ciclovias, miniônibus, que atravessam espaços restritos, acessos a partir de teleféricos em vários pontos. Mas uma variável que é muito útil é que o sentido de expansão no Continente tem sido muito grande, exigindo outras opções para o deslocamento para a Ilha. Talvez outras pontes – o que teria um custo muito alto –, talvez túneis, como em Hong Kong. Meios que não comprometem o visual e o paisagismo. Não se pode falar em Florianópolis sem considerar que o trânsito é interdependente de todos os municípios da região.
(Geral – Diário Catarinense – 31/05/2009)